segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

O mendigo que estuda Philip K. Dyck



Carla Fernanda da Silva
Historiadora

Todas as religiões tiveram grande respeito pelos mendigos, porque estes são a prova de que o espírito e a regra, as consequências e o princípio falham vergonhosamente numa coisa tão singela e banal quanto sagrada e vivificante como era a esmola.
Queixamo-nos dos mendigos nos países do sul e esquecemo-nos de que a insistência com que se nos colam é tão legítima quanto a obstinação do estudioso perante um texto difícil. Não há sombra de hesitação, não há indício, ainda que imperceptível, de vontade ou reflexão que eles não leiam na nossa fisionomia.
Walter Benjamin – Sentido Único


A Biblioteca de Ciências Humanas da Université de Franche-Comté é um ambiente extremamente democrático. Nas mesas se espalham estudantes de todos os continentes, e entre burcas e minissaias, dreads, xales de oração e keffiyeh, teses são escritas nas mais diversas línguas. Os alfabetos cirílico, grego, hebraico, árabe e latino misturam-se em telas de computadores e blocos de notas. O silêncio impera, o burburinho de tantos idiomas e sotaques são ouvidos apenas nos corredores e no belo pátio interno.

Pátio Interno – Université de Franche-Comté
Foto: Carla Fernanda da Silva

Mas não são apenas estudantes e professores que circulam por entre as estantes da Biblioteca da Rue Megevand, como é conhecida, também a frequentam alguns moradores de rua e doentes psiquiátricos. Acerca de 14 km da cidade, na comuna de Novillars - com cerca de 1600 habitantes, existe um grande hospital e centro psiquiátrico. Semelhante ao Brasil o internamento é temporário e, como muitos foram abandonados pela família, é comum vê-los vagando pelo centreville de Besançon de tempos em tempos.

Algumas destas pessoas têm como destino diário a Biblioteca de Humanas, como um senhor negro que passa o dia falando ‘sozinho’ na escada de acesso à biblioteca e, nos dias mais frios, fica sentado em um sofá no setor de leitura de revistas e jornais. Há também um jovem que se veste  de túnica marrom e um manto verde, parece um personagem medieval, sempre com os pés descalços, mesmo no frio de 1ºC de dezembro, chama a atenção de todos. Em pé, diante das estantes, ele lê atentamente os livros de filosofia.

Nas últimas três semanas outro senhor, de gestos contidos e certa timidez, tem me chamado a atenção. Vi pela primeira vez quando pediu um cigarro a uma conhecida; as mãos sujas, a roupa puída e rasgada, possibilitou-nos reconhecer como um morador de rua. Ele tem ido todos os dias e senta-se sempre na primeira mesa, onde também estudo. No balcão, pede os livros que deseja, tira do bolso com cuidado e respeito uma caneta e passa a anotar frases em uma folha de rascunho. Diferente de nossas citações bem esquadrinhadas em fichas quadriculadas, suas frases espalham-se sinuosas sobre a folha, em sentidos diversos e se entrecruzando, mais parece um mapa de ruas formadas por pequenas letras.

Curiosa, fiquei alguns dias tentando ler o título e o autor do livro que ele busca todos os dias, um grosso volume com mais de 1000 páginas, mas a minha miopia teimava em embaçar as letras. Um dia, ele saiu e deixou seu material sobre a mesa, levantei-me e fui ler o título, para meu espanto era uma coletânea de Philip K. Dyck, escritor de ficção científica, cuja obra é conhecida pela maioria por suas adaptações ao cinema, como o cult Blade Runner, O Vingador do Futuro, Minority Report, entre outros.

Foto: Reprodução

Philip K. Dyck é um autor que os fãs gostam de pensar como um marginal, um ‘vagabundo iluminado’ que teve reconhecimento apenas após a sua morte e que, para além de ficção, escreveu profecias científicas, agora anotadas em linhas tortuosas por um curioso leitor Pergunto-me o que será que ele lê nas entrelinhas das histórias de Dick. Quais mistérios busca decifrar ao misturar enigmáticas frases de tantas histórias?

Philip K. Dyck 
Foto: Reprodução 

Ele não é estudante universitário, é alguém que a ciência médica designou como louco e a sociedade excluiu. Penso que pouco importa as outras histórias que ele escreve nas junções e sobreposições de frases de Philip K. Dyck ou quais mundos ele habita em sua leitura, o que importa é que todos os dias ele vem à Biblioteca construir o seu mundo, porque ali encontrou acolhida e respeito.

As Bibliotecas estão aí, com milhares de mundos-livros a habitar, só é preciso entrar e ler. Não há valores a pagar, por isso não há desculpa para dizer que livro é inacessível e caro. Os ambientes são sempre interessantes e os frequentadores assíduos costumam formar uma silenciosa, cúmplice e solidária comunidade. Não há solidão em uma biblioteca! 

Besançon, 17/02/2014